terça-feira, 6 de abril de 2010

a teoria das galochas.

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It's The End Of The World As We Know It (And I Feel Fine)
R.E.M
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Bastou-me apenas uma visão para que a minha vontade de escrever voltasse novamente desde o dia 15 de março... A fotografia de uma boneca sem roupas caída em meio a lama na rua veio para mim como Robert Capa na guerra, sem querer me deixei tocar pela trágedia ao invés de temas lindos e felizes que me vieram à cabeça a semana toda. Apesar de não faltarem assuntos a se falar desde que eu cheguei ao Brasil, o desânimo para fazer qualquer coisa me tomou de tal maneira que não conseguia nem me expressar...
Desde de ontem a noite, o Rio de Janeiro enfrentou algo nunca visto com tanta intensidade nas últimas décadas, a chuva que se abateu contra palmeiras, ruas com má infra-estrutura e cariocas despreparados causou mais do que dor de cabeça nas pessoas que as estavam enfrentando, como uma coisa tão bonita ao meu ver de manhã que caía do céu branco opaco pode causar tanta destruição por ser simplesmente... água?
Logo pela manhã meu humor já não estava muito para ir à faculdade e quando as autoridades aconselharam a gente a ficar em casa achei que seria uma boa deixa para se fazer absolutamente nada, mas na hora não me toquei que esse nada era realmente NADA. O tédio nesses últimos dias já me acompanhava numa semana que pelo menos tinha a faculdade para preencher 1/3 do dia, mas hoje não havia nada, apenas a chuva, minha rua alagada, repórteres surtando, uma dvdoteca que já cansei de ver e uma SKY que não passava nada de interessante. Ok... Não era tão legal quanto eu imaginei. Durante um tempo consegui me sedar vendo programas que não queria ver, me maquiando para testar a nova maquiagem (...), separando as cartas do baralho em ordem alfabética de naípes e númerica crescente, vendo a chuva diminuir pela janela da sala e tentando convencer a minha mãe gripada e irmã sem paciência a jogar Scotland Yard, nada feito... O problema não era o ficar sem fazer nada, e sim a caixinha de Pandora que está a minha cabeça ultimamente, o ócio para mim está um perigo, metaforicamente poderia dizer que é a chuva que cada vez mais chove dentro de mim me fazendo afogar em mim mesma. Precisava sair... Andar à ermo.
Já tinha parado de chover quando vesti as minhas galochas que vão até os joelhos e peguei a minha bolsa com o Ipod e dinheiro para alugar um filme na locadora que na verdade nem sabia se estava aberta ou não, mas para falar a verdade queria mesmo é dar uma volta. Era tanta a tragédia que anunciavam que fiquei até sufocada, precisava de ar. Enquanto andava e escutava música via os estragos que a chuva havia feito durante toda a sua atuação: lama, lixo, lojas fechadas, parecia um final de domingo chuvoso em final de campeonato Fla x Flu no Maracanã. Era triste por causa das mortes e pessoas desabrigadas, mas sem querer uma Amelie, ou quem sabe Pollyanna ou até mesmo a Lilly Allen naquele clipe baixou em mim e achei até que bonita a cena... Homens do Apoio ajudando velhinhas a pular as poças d'água, vizinhos se mobilizando para limpar as calçadas todas sujas de terra, o céu branquinho branquinho com minúsculos pontinhos decantando sob minha cabeça parecendo floquinhos de neve, a criança que se soltou da mão da mãe só para colocar o pé no lodo mesmo depois levando uma bronca da própria e a foto que não tirei não sei porque da boneca caída no chão. Parece que eu tenho quase que uma necessidade empírica de poetizar as coisas e torná-las, não sei, coloridas apesar das fotografias de Capa serem em preto e branco.
É quando ninguém mais vê beleza num lodo que nasce um lótus que nos faz perguntar o porque nos tocamos com coisas que a primeira vista são um caos e para que elas se apaziguem dentro da gente devemos achar o lótus desta própria coisa... É quando há apenas poças que a única diversão tirada é a de usar galochas e andar sob elas. Tenho a teoria de que todo mundo devia ter pelo menos uma galocha... Acho que é esse o grande remédio da depressão humanitária que só faz prender as pessoas dentro delas mesmas, o sentimento diário de se auto regular e privar de certas coisas que deveria ser levada ralo abaixo pelo uso de galochas na chuva. Nada mais libertador do que enfiar com toda a sua força a galocha na poça dando de primeira aquele sentimento de estar fazendo uma coisa ''tabu'' só que na verdade não atinge você de fato.
Não entendo essa humanidade que cismou de se guardar por acanhamento e acomodação, seria mais saudável ter pelo menos uma válvula de escape qualquer seja ela gritar do nada no meio da rua, fazer o que gosta mesmo com meio mundo contra, ficando sozinho, acompanhado ou até mesmo andar à ermo como num clipe passando por poças, lamas e lixos como se fosse a coisa mais normal do mundo para depois ao chegar em casa e levar a pobre coitada da galocha direto para o tanque.
Terminou com um verbo que não deveria estar começando este parágrafo, numa locadora surpreendentemente aberta para este domingo chuvoso disfarçado de terça, fui pegar pelo menos dois filmes para me atualizar e tornar esse fim de tarde mais prazeroso, mas devo confessar que minha ideia de gênio não foi de tão genial assim porque outros gênios tiveram a mesma ideia que eu ficando junto comigo na fila em pelo menos vinte minutos... Mas tudo bem, já estava bem melhor. O mundo podia estar acabando lá fora, mas pelo menos o meu fim de mundo interno ficou um pouco preso sob a terra dos asfaltos limpando em água suja algo que estava bem mais preto do que ele.

3 comentários:

  1. Texto lindo! Adorei vc ter feito poesia dessa tragédia! Lindo mesmo!
    Kra, vc eh totalmente profunda... Eu sou tão rasa! Queria ser como vc!
    TE AMO!
    BJS

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  2. Fadinha, a galocha ajuda mas o que te faz perceber a flor de lotus no lodo não é o que te firma no chão..e sim suas asas.
    Seus vôos são sempre lindos.
    beijos, anti-heroína

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  3. "[...]mas devo confessar que minha ideia de gênio não foi de tão genial assim porque outros gênios tiveram a mesma ideia que eu ficando junto comigo na fila em pelo menos vinte minutos... [...]" hahahahahahaha... sensacional!!! realmente fabuloso!!! adoro as suas caminhada a ermo!!!!


    bjus flor!!!!

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